Era uma tarde fria de inverno, como tantas outras, na cidade de Curitiba. Uma jovem de estatura mediana, já em trabalho de parto, entra lentamente em um hospital público da cidade. Os médicos já a conheciam, não pelo nome, mas já sabiam que ela havia feito algumas consultas de seu pré-natal naquele mesmo hospital.
Sabiam que se tratava de uma menina humilde do bairro, alguém como muitas outras paranaenses e, por que não dizer, brasileiras. Grávida e sem dinheiro para dar moradia, alimentação e educação dignas ao seu primogênito.
Os enfermeiros perceberam que o bebê estava para nascer. Correria pelos corredores do hospital. Primeiro, colocaram-na em uma cadeira de rodas. Ao passarem correndo em frente à recepção, pediram que já acionassem a médica de plantão e entraram apressados no elevador. Subiram direto para o quarto andar onde os partos eram realizados.
Na saída do elevador trocaram a cadeira de rodas por uma maca surrada e de rodinhas parcialmente emperradas. Passaram pelo grande corredor verde clarinho com flores nas portas de alguns quartos e, em muito pouco tempo, atravessaram a porta que divide o corredor da sala de parto. Em menos de 5 minutos a jovem que entrou caminhando calmamente pela porta da frente do hospital, já estava vestida com um avental azul usado pelos pacientes e frente a frente com a médica que seria a responsável pelo parto.
Neste momento duas histórias se cruzam exatamente do mesmo modo que outras idênticas se cruzavam em São Paulo, no Recife, em Nova Iorque e em Milão.
A médica e a gestante, a responsável por dar a luz e a responsável por ajudar neste processo se olham. A doutora, em bom português e com sotaque de estrangeiro diz: “Vamos mãe? Podemos começar?” Com um aceno de cabeça e uma contração involuntária tem início então mais um parto daquela obstetra italiana nas terras descobertas por Cabral.
O parto não apresentou qualquer contratempo, mas por ser um parto normal, deve ter levado mais ou menos duas horas. Tempo em que a médica permaneceu dando todo o apoio, tanto médico quanto psicológico para aquela menina que estava sozinha durante aquele momento importante. Não havia pai, mãe ou irmão nem ninguém junto a ela no hospital.
Quando perguntaram a respeito do namorado ou marido, respondeu que a vida toda ela havia sido sozinha e que neste momento não esperava nada diferente disto. A médica compreendeu que este caminho deixaria a paciente nervosa e, apertando sua mão disse novamente com seu sotaque italiano: “Mais um pouquinho e já vai nascer”.
Cinco minutos passaram-se e o choro de Michelle eclodiu pelo o ambiente. Nascia então mais uma brasileira.
A médica parabeniza a nova mãe, dá-lhe um beijo na testa, as últimas instruções aos enfermeiros e sai apressada da sala para atender outro caso parecido.
A equipe finaliza os procedimentos e leva a mãe até o quarto. O bebê vai tomar seu primeiro banho e ganha suas primeiras roupas. Algumas ONGs recolhem doações e deixam nas maternidades de Curitiba já que casos como estes não são muito incomuns no dia a dia dos hospitais.
São dez horas da noite. Faz muito frio no Sul do Brasil nesta época do ano. Os enfermeiros passam no quarto para medir a pressão da mãe e dizem que ela terá alta no dia seguinte pela manhã e a informam também que por causa da temperatura demasiadamente baixa naquela noite, a criança dormiria no berçário por ser este um local aquecido. Explicaram que não seria bom para a recém-nascida passar aquele frio já em sua primeira noite de vida.
A mãe concorda com a cabeça, assim como fizera no início do parto só que desta vez ela tem um sorriso no canto da boca. Os enfermeiros associam aquela imagem à felicidade que toda a mulher sente ao ser mãe. Viram as costas e voltam correndo à sala de parto onde novas histórias se cruzavam. Outra jovem em trabalho de parto, outra vez a médica italiana, outra vez sem qualquer apoio da família ou companheiro.
Estamos no início da década de 1990, Michelle tem pouco mais de 5 horas de vida.
São três e pouco da manhã. A jovem mãe de Michelle levanta de sua cama, já está razoavelmente bem fisicamente e vestida com a roupa que chegou ao hospital, caminha na ponta dos dedos até a porta do quarto. Não desejava acordar nenhuma das outras duas pessoas com quem estava dividindo o quarto. Chega à porta e empurra a maçaneta vagarosamente para baixo. Ouve o clique. A porta se abre lentamente. Com todo o cuidado para não ser vista ela coloca a cabeça para fora, olha para os dois lados do corredor. Escuta o barulho do elevador abrindo a porta. Apressada, volta a cabeça para dentro do quarto e encosta a porta. Espera por alguns instantes, estática, sem sequer respirar, atrás da porta. Escuta os passos apressados de duas ou três pessoas passando pelo corredor e o barulho seco das portas da sala de parto sendo aberta, em seguida vem o “nhec-nhec” das molas que as seguram.
Neste momento, ela volta a abrir a porta e colocar a cabeça para fora.
Tudo livre, agora dá.
Levanta a cabeça e disfarçando as dores que ainda sentia caminha até o elevador e desce para o térreo. Sem qualquer dificuldade sai da maternidade e volta para o lugar de onde saiu barriguda por volta das nove horas da noite do dia anterior.
Os sistemas de monitoramento por câmeras ainda custavam muito caro. Os valores eram impeditivos para que os hospitais públicos fossem equipados com eles. E com isso, a mulher que entrou no hospital em trabalho de parto e que sorriu ao saber que Michelle não dormiria ao seu lado naquela noite, deixara o hospital sem deixar qualquer rastro. Deixara para trás sua menina que sequer conheceu.
No dia seguinte, por volta das 11:00h a médica italiana é informada da fuga da jovem mãe. Como morava há pouco tempo no Brasil e sem possibilidades biológicas de gerar uma criança a médica não se conforma com a atitude da jovem por julgar absolutamente infantil.
Como pode alguém deixar um filho de lado? Pensava consigo.
Mesmo com o dia coberto por atendimentos, a médica italiana consegue um tempo e vai até o Juizado da Infância e Juventude de Curitiba e se informa sobre o processo de adoção no Brasil. Após mais de seis meses de burocracia, consegue enfim a certidão de nascimento de Michelle, que até aqui não tinha sobrenome, passa a chamar-se Michelle Zanini.
Após pouco mais de três meses a médica volta para a Itália, vai morar em Milão ao lado de sua mãe e seu pai e cuidar de sua filha. Ela gosta do Brasil mas entende que a Itália dará mais condições para Michelle.
A pequena cresce italiana sem saber que é brasileira. Na adolescência descobre-se brasileira. Descobre que sua história teve um começo diferente daquelas de seus amigos. Descobre que sua origem está a mais ou menos 10 horas de avião de onde mora. Descobre-se Curitibana.
Estuda na Itália até completar a “Università Cattolica del Sacro Cuore – Sede di Milano” e depois vai morar por uns tempos em Paris.
Ficamos amigos por fazermos aula na mesma escola de francês. Michelle nos conta sua história com um brilho nos olhos. Diz ter orgulho de ser brasileira. Ama o Brasil. É encantada por literatura brasileira. Descobriu recentemente Jorge Amado e se apaixonou por ele.
Mesmo sem saber uma palavra em português, quando estávamos conversando em nossa língua materna e ela chegava, pedia que continuássemos falando em português. “Pas de problème. J’aime bien écouter le portugais du Brèsil”.
Em uma noite fria, após sairmos de uma festa e não ter mais o metrô funcionando, pegamos um ônibus para voltar para casa. No caminho ela afirma com os olhos marejados: Não entendo o motivo de ter sido deixada na maternidade. Digo a ela que as coisas na década de 1990 eram muito complicadas no Brasil e que havia muitas pessoas sem condições de criar um filho. Ela olha com certa desconfiança. Não acredita no que acabo de dizer. “C’est vrai”, reafirmo.
Pergunto a ela se gostaria de conhecer sua mãe biológica, ela responde sem titubear “Oui, bien sûr”, literalmente, sim com certeza e continua: “minha mãe acha desnecessário este contato, acha que eu não preciso disso. Acho que é ciúmes.”
O ônibus para no ponto, ela pede desculpas por nos chatear com aquele assunto. Nos despedimos. Michelle entra na primeira rua à direita, nós, na primeira à esquerda.